terça-feira, 20 de março de 2012

Zagalo, caçador furtivo ...

Zagalo estava na mira do insidioso guarda Fusqueto. Personagem maléfica, exercia o seu poder arrogante de modo discricionário e autoritário sobre a timorata população. Zagalo não fugia à regra e, na sua actividade furtiva, o silêncio era lei. Por vezes, quando a tarefa era exigente em termos operacionais, requisitava os serviços de Roberto, empurrando sempre Torquaz para uma tarefa desviante.Este ainda não tinha valência para uma actividade clandestina, nem a firmeza de carácter de Roberto. Também este ainda não revelava traquejo de emancipação. Zagalo não confiava em nehum deles, e por coerência, nunca lhes revelava os reais intentos de qualquer operação. Pelo contrário, dava-lhe pistas falsas para obter a sua cooperação. Avisado andava Zagalo. O guarda Fusqueto não ocultava o objectivo claro de enjaular  Zagalo. A discricionaridade dos seus actos levava à conclusão que havia informadores dissimulados que lhe forneciam informação confidencial. Zagalo movia-se numa teia de interesses mesquinhos e era alvo de atenção redobrada, em todo o instante e lugar. Qualquer passo em falso, ser-lhe ia fatal. Todos os seus passos aparentavam normalidade, e nas suas deambulações recorria ao seu pacato jumento para a deslocação às pequenas parcelas de terra, estrategicamente situadas. Nalgumas tarefas, de média perigosidade, recorria ao Roberto para o transporte da fusqueta , convidando-o a cavalgar o pacato jumento. Em caso de emergência, ambos voariam com o vento perdendo-se numa nuvem de poeira. Fusqueto já falhara cinco tentativas de apanhar os transgressores. Não se apercebia, porém, do ardil magicado por Zagalo. De início, provocara-o intencionalmente e havia-lhe facilitado a detenção por três vezes, com o resultado previsto: ilibados por falta de objecto material do crime (a fusqueta). Aumentou a parada, e após as cinco tentativas falhadas seguintes, acabara por desistir. Roberto largava a fusqueta no meio da mata carvalhiça e daí a fusqueta seguia oportunamente para o local do crime. Era tudo o que Roberto sabia. A partir daqui, existia um vazio total sobre a operação. Em caso de sucesso, era convidado para uma comezaina, em local nunca repetido. Zagalo recorria, na sua ideia, ao principio de menor risco. De todos as deambulações com Roberto,  a fusqueta só era envolvida raramente. Tinha uma noção vaga de segurança, mas eficaz. Ambos sabiam que fusqueta, na realidade, significava espingarda, termo que quase se confundia com Fusqueto. Assim, a mente não se olvidava da lembrança da perigosidade do transporte. Em caso extremo, da improvável intercepção por parte do guarda Fusqueto mostravam os seus  argumentos de rapazolas espigadotes e destemidos, e as tentativas falhadas avivavam-lhe a prudência. Invariavelmente, chamavam o cão do vizinho acusador, por eles conhecido e apelidado de  Fusco. Interpelados, respondiam senhor Fusqueto, mas a graçola era subrepticiamente entendida como cão do vizinho, seu protegido. Este não requeria licença camarária, ao contrário de muitos outros, pois estava debaixo da protecção do discricionário guarda Fusqueto. Era animal de pleno direito. Este era amigo fiel de Zagalo, registava o seu tratamento carinhoso e fugia do verdadeiro dono como animal abandonado. Permanentemente em crise, era de Zagalo que Fusco recebia algumas migalhas. Formavam um verdadeiro trio de ataque.
 Zagalo andava submetido a um colete de forças. Vivia amargurado em casa, de telha vã. Alternava entre a casa paterna e o palheiro. Decidia-se pelo palheiro em frias noites inverniças, mas quando chovia não tinha alternativa. O ano era longo e os dias sucediam-se miseráveis. Circunspecto e pensativo, remoia a ideia da falta de comida à mesa dos seus desnutridos irmãos. Não cedia à pressão da caça furtiva, enfrentando se necessário fosse o temido Fusqueto. Na vida não vale tudo, custe o que custar. Argumentava com razão que a caça era de natureza pública e o poder viera a apoderar-se dela. A dignidade humana permitia-lhe a revolta e lutava por causa justa. Um dos seus pequenos irmãos invectivou o guarda, perguntando-lhe pela papeleta do cão livre. Esta ocorrência chegou aos ouvidos de Zagalo, vendo nele um seu possível sucessor. O uso da fusqueta nem sempre o conduzia a um final feliz. A espera, silenciosa e prolongada, em local estratégico e de visita frequente dos coelhos bravos exigia um protocolo de procedimentos exigentes. A segurança era vital e Roberto incumbia-se de seguir discretamente as saídas nocturnas de Fusqueto. Em caso de emergência, acendia uma fogueira de aviso, em local apropriado. O ruído da explosão ouvia-se a grande distância e, de imediato, havia que abandonar a posição. Falhado o alvo, a fusqueta era abandonada no matagal para nova investida. A alegria dos seus irmãos ficaria adiada, mas com temperamento férreo não desistia de lutar. Os estampidos nocturnos acicatavam o pensamento tortuoso do guarda Fosqueto. A guerra titânica entre gato e rato prolongava-se indefinidamente. O tempo de impunidade jogava a favor de   Zagalo e, por oposição, a respeitabilidade de Fusqueto decrescia. Já circulavam, em surdina, comentários jocosos, pois ninguem percebia o investimento governativo no malquisto Fusqueto. Mas lei é lei, e não havendo prova flagrante não há detenção, argumentava ele. Assim ia Zagalo vivendo livre, sem liberdade. Até os ecos dos disparos se terem desvanecido na mente de Fusqueto, ia recorrendo a métodos alternativos, ora semeando ao vento armadilhas, perigosas e traiçoeiras, pelos montes ermos da Serrica, ora colhendo os produtos apanhados em utensílios similares de outros colegas de actividade clandestina. Vigiavam-se uns aos outros, embora fosse uma operação arriscada. Fugiam à teia da lei e dos regulamentos de caça, voltando aos tempos idos dos caçadores-recolectores, obedecendo à única  lei da sobrevivência.
Zagalo não esgotava as suas variantes de diversão clandestina. Quando, por acaso, lhe caía em sorte uma perdiz, era ouro sobre azul. Sabia procurá-las na Mó e no Vale do Quadro, seguindo a pista e os trilhos do tio Planilha. Os seus irmãos viravam anjos e Zagalo era o seu deus. Divertia-se com a sua satisfação, mas não ignorava a vida cruel e repetida que a sua condição de pobreza os levaria. Não era um coelho qualquer que lhe apontava o caminho da emigração. Era qualquer outra razão que não sabia explicar com clareza, mas que entroncava na sua vida miserável e de infortúnio. Em tempos de desânimo, transmitia o seu rudimentar pensamento ao entendido Torquaz. Este, por sua vez, transmitira já buriladas as ideias mestras do Zagalo a um perdido primo lisboeta, estudante avançado de filosofia. Em termos gerais, revelara que as dúvidas de Zagalo fazim sentido e que muitas das suas dúvidas podiam ser enquadradas na origem da família, da propriedade e do estado. Advertiu-o, porém, da perigosidade destas ideias. Torquaz não compreendeu nada do assunto, nem sabia o significado de propriedade e de estado. Era mais reflexivo que Zagalo, mas o que lhe importava era a sua genuina colaboração com ele. Libertava-o da monotonia de dias iguais, fugia à intrigalhada da aldeia e, ademais, gozava da natureza em pleno. Acrescia ainda que não era exímio na acção, como frequentemente Zagalo recordava. Refinadamente, era indiferente às actividades de Zagalo e a sua tranquilidade residia mais no pensamento que na acção. A verdadeira felicidade de Torquaz revela-se na contemplação da estrela boeira e do céu nocturno, em tardes e noites quentes de Agosto. A sua mente voava para outro mundo quando observava os satélites artificiais a passearem pelo céu estrelado. Andava intrigado com a descrição dos movimentos dos satélites, pois via-os deslocarem-se em sentidos opostos.
 Não aprendera ele na escola que a terra era redonda? Seria possível uma qualquer inversão de marcha no extremo do firmamento?

Fig.1 - Laika aprisionada

 Seria possível que a historieta mal contada da Bela Laika , permitia supor que Laika era mais inteligente que Fusco? Era ela, porventura, que permitia inverter o sentido da marcha? Nada para ele fazia sentido.
Era problema a colocar ao primo distante. Sentia-se, porém, bem no seu papel, e cada macaco no seu galho. Zagalo executava o seu papel, de modo independente e sem constrições, e a sua colaboração
resumia-se a um simples observador, colaborante das tarefas apontadas e por si nunca questionadas. As mentiras inocentes de Zagalo ilivavam-no, em caso de recurso, e a figura de tanso não lhe desagradava. Porém, não comia nem engolia as meias verdades de Zagalo.
 Zagalo era, apesar de tudo, um amigo fiel e constante. Já o havia protegido, em situações perigosas de sova certa. A seu modo, Torquaz também não deixava cair temas no vazio: um dia haveria de saber. As vagas sucessivas de emigração eram-lhe familiares, numa delas viu desaparecer a sua inconfessada amada Margarida Rute. Zagalo não ignorava o caminho do exílio, mas debatia-se com a questão da carta de chamada e da  falta de crédito para a viagem. Problemas que não tem solução, resolvidos estão. O dia de sorte ou azar, um dia chegará, dizia cabisbaixo ao amigo Torquaz. Talvez o vento confidencie o segredo ao magnânimo Furriel que, dizia-se, servia de banqueiro do povo e da miséria. Fazia jus a uma seguidora desconhecida de Teresa de Ávila, de terras espanholas não muito distantes.  Na vida de Zagalo, a dureza da alma e o corpo fustigado não lhe toleravam pieguices. A sua actividade clandestina era o único projecto de vida, era objectivo e baseava-se em causa justa. Na sua ideia, ficara-lhe este eco de um sermão inflamado sobre a guerra, convenientemente explicado pelo padre da aldeia, seu amigo. Em conversa paroquial, segredou-lhe alguns príncipios de vida e consciente da sua possível perdição conversava com ele, regularmente. Zagalo sabia da fraqueza do padre, pois vivia amancebado. Eram companheiros perseguidos. A uma pergunta inquisitorial do bispo sobre a sua vivência, supostamente  marital e duas crianças, filhas de pai incógnito, respondeu secamente: são filhos de Maria Madalena e meus sobrinhos, senhor. Estimo-as, enquanto dádivas divinas e inocentes, como qualquer pai que se preze o faria.
Para Zagalo, o perigo eminente era-lhe indiferente, e se um homem tem de morrer, morra de pé. Queria lá saber de pieguices, coelho bravio não tem alma nem sensibilidade. Zagalo descobrira o príncipio do aumento de productividade pelos seus próprios meios. Os seus métodos clandestinos de produção, garantia de sobrevivência, eram bastante limitativos mas tinham o mérito de ser moderamente perigosos. Fusqueto perdera sempre os duelos.
Em circunstâncias não reveladas, Zagalo decidira refinar os seus métodos de caça clandestina. Pela mão de um amigo incógnito, cansado deste ofício pela recusa  muscular, em anos de frio e chuva continuados, chegou ao mestre da caça clandestina.



 Fig. 2 - Acompanhante clandestino de Zagalo

 Detinha terríficos animais, que punham em pânico populações inteiras de coelhos bravios, furões de seu nome. A productividade iria aumentar, conjecturava ele, e o risco de ser apanhado em flagrante no exercício da suas tarefas clandestinas garantia-lhe, pela certa, incontáveis anos de prisão efectiva. Não era a vida prisional que o amargurava, pois em semelhante situação o estado garantir-lhe-ia comida sofrível e telhado coberto. Era, isso sim,  o opróbio e escárnio da população, por mau desempenho. Consciente deste facto, negociou as condições do respectivo contrato com o mestre. As cláusulas eram severas para Zagalo, mas quem não arrisca não petisca. À cabeça, pagaria a pronto o valor estipulado para o bicho e toda a produção era taxada a 25%. Os arredondamentos da partilha (para cima) eram sempre favoráveis ao vendedor, caso o número fosse superior a cinco. Negócio de agiota. Como em  qualquer vendeta italiana, se a origem do bicho fosse revelada teria que pagar com pesada pena corporal. Perante condições tão leoninas, Zagalo apenas conseguiu uma pequena cláusula, envolvendo treinamento real de uma hora, em local desconhecido.  A sua vida  dependia do seu bom aproveitamento e a sua vida futura estaria para todo o sempre associada à sua real eficiência no mister. Cumprida a primeira parte do contrato, recapitulou, em noite forçada de insónia, todos os detalhes e os mais ínfimos pormenores do comportamento do animal. Iriam colaborar intimamente e o sucesso de um arrastaria o do outro e vice-versa. As dúvidas, entretanto surgidas, foram devidamente treinadas em exercicios reais. Afeiçoara-se ao bicho e sentia-se preparado para um exame real, de natureza logística complexa. A existência do bicho só era do conhecimento do mestre e de Zagalo. O segredo era vital e imperativo. A operação requeria a intervenção de Torquaz, Roberto e, obviamente, Zagalo. A Torquaz estava atribuída a tarefa menor de simples vigilância do local envolvente, lá para as bandas do Vale do Freixo  e, colocado em fraga altaneira de granito teria que alertar os meliantes com os reflexos de um velho espelho. Zagalo tratou de deixar um pequeno saco de castanhas, para passar o tempo e enganar o estômago. Ficara combinado que, mais tarde, haviam de juntar-se com um outro muito mais pesado saco de castanhas, surripiado mais uma vez ao tio Canavarro. Alertou que a operação era morosa, pois, só avançariam com a certeza absoluta de que o saque teria pleno êxito. Poderia até prolongar-se para além do anoitecer. Não desagradava a Torquaz a ideia de recontar mais uma vez as estrelas do céu. A tarefa atribuida a Roberto envolvia o controlo de uma rede, vagamente piscatória, com uma mensagem codificada: apanha e ensaca. Por caminhos estranhos, Zagalo deu ínicio às  suas aptidões, ganhas  no curso abreviado e na sua aprendizagem pessoal. O seu arrebatamento foi total quando, finalizada a operação, Roberto havia ensacado nove, no limite máximo do seu conhecimento. Números grandes de milhares, milhões, milhares de milhão e por aí adiante, eram-lhe perfeitamente irrelevantes. Esses números eram, apenas, linguagem de políticos corruptos e do trio, só vagamente, Torquaz sabia a sua real valoração. Não era coisa pouca para Zagalo aumentar a productividade de um, dois no seu melhor, para nove. Era obra! Fora bem sucedido desta vez, e supersticioso como era, entrara com o pé direito. Escondido o contrabando, trataram de carregar o saco de castanhas no dorso do seu dócil jumento e foram confraternizar com Torquaz. Deram-lhe a primazia  da escolha da data do magusto. A logística ficaria por conta de Roberto e Torquaz. Desconfiado de tamanha amabilidade, agradeceu, vestindo a pele de um actor menor como se fosse um imbecil. A partilha foi feita com o que havia sido combinado. Três pertenceriam ao mestre, ficando apenas seis disponíveis. Um ficaria cativo para venda clandestina, e decidira dar dois a Roberto. Este recusou, levando apenas um, pois sabia da precária situação  de Zagalo. A alegria voltara à casa de telha vã. Afortunadamente, Zagalo progredia para um domínio completo do métier, e a acumulação das sucessivas vendas clandestinas permitiu-lhe aforrar o suficiente para a compra de um bilhete de 3ª classe no paquete Vera Cruz. Por vezes, mostrava reluzentes moedas cuja origem Fusqueto adivinhava. Tudo parecia uma vitória antecipada de Zagalo, quando decidira despedir-se dos amigos com uma peixaria especial. Fusqueto preparou-se para uma vigilância apertada, solicitando a colaboração de colegas seus. Eufórico pela partida, baixara o seu grau de profissionalismo. Partira para o rio com uma rede piscatória, e se a empresa fosse bem sucedida a despedida seria de arromba. Vigiado por Fusqueto, foi encurralado pelo rio e pela sua equipa de guardas. Apanhado em flagrante delito, sofreu a humilhação das algemas e foi conduzido ao juiz com a acusação de violação da lei da pesca, desobediência  e tentativa de agressão à autoridade. Os colegas de Fusqueto viam na acusação de desobediência e tentativa de agressão, uma clara manifestação de abuso de autoridade. E disso deram conhecimento ao juiz, em declaração individual. Sumariamente, Zagalo foi condenado a uma pesada multa, mas ilibado das restantes peças de acusação.O flagrante delito estava lá e, nesse aspecto, a vitória de Fusqueto era clara. Após a leitura da sentença, o juiz  interessou-se pelo seu caso e, em tom amical, explicou-lhe as suas consequências. Mandou-o passar novamente pelo tribunal para regularizar a questão da multa. O montante fora coberto, por empréstimo e sem juros, pelo banqueiro do povo. Radiante, apresentou-se ao juiz na data aprazada. Cumpridas as formalidades, o juiz deu o caso por encerrado. Recordaria para todo o sempre o tom afável da sua douta consideração. O Snr.Zagalo  é agora um homem livre e, no novo mundo, use a sua liberdade com honradez!
Antes da partida enfrentara Fusqueto pela derradeira vez. Malvado, não passas de um homenzinho, enxertado em corno de veado, dir-lhe-ia.

Fig.3 - Velha locomotiva a vapor, alemã.

 A sua despedida foi calorosa, não faltando a petiscada de peixes magníficos do rio, obra dos amigos. Roberto piscou o  olho e balbuciou um até breve. Despediu-se de Torquaz, com um enigmático: até sempre, camarada. Poucos dias passados, galgava léguas no planalto mirandês, sentado no velho assento de madeira do combóio, espólio da 1ª guerra mundial. Rumava ao cais da Rocha Conde de Óbidos, onde o Vera Cruz o esperava com a bandeira da liberdade.