sábado, 18 de fevereiro de 2012

Destinos cruzados

Margarida Rute, ladina e atrevida, vangloriava-se de ser a única rapariga da aldeia capaz de colocar Zagalo em sentido. Não vacilava na sua presença e, com voz viperina e em português vernáculo, humilhava-o públicamente. Zagalo já tomara a atitude de prudência preventiva e não se expunha demasiado às suas piadas chocarreiras. Não a ignorava, mas também não a temia. O poder juvenil assentava nestes dois personagens, liderando  as diferenciadas do pensamento primário recorrente: olho por olho, dente por dente. Companheiros de escola, leitores dos mesmos antiquados textos, alimentavam um ódio de estimação permanente. A relação de poder oscilava entre o temor e o ataque. Não havia poder absoluto. Os outros camaradas de escola não ousavam tomar partido declarado e, procuravam fugir da chuva, furtando-se aos afrontamentos directos. A mente de Fernando Torquaz, tímido e perspicaz, andava perturbada.. Num desses afrontamentos, sem pronunciar palavra, lançou um fugaz sorriso de apoio à causa de Margarida. Este gesto, breve e passageiro, não passou despercebido a Zagalo. Dissimulado, começou a registar os seus gestos. Margarida Rute brandia a sua espada, escudada na reposição da verdade justiceira e vingativa dos seus irmãos de sangue. Os seus pais, pequenos agricultores, à míngua de prendas terrenas, chamavam-lhe, simplesmente "Pérola". Zagalo sabia que não podia correr qualquer risco em confrontos directos, cumpria o básico, mas a sua mente não recusava o revanchismo. Talvez fosse este o sentido profundo da sua contenção preventiva.
Consciente da sua limitação de poder absoluto, assumia o controlo total de todos os outros rapazes. Liderava o planeamento e coordenação dos pequenos assaltos às propriedades que, desafortunadamente, lhe colocassem na sua observação de lince um belo exemplar de melão ou melancia. As cabanas rudimentares de protecção eram-lhe familiares. Sabia como contornar o previsível perigo e, como regra básica de comandante, nunca se expunha ao perigo, em primeira linha. Recorria a peões de brega, que invariavelmente arcavam com a responsabilidade directa do fracasso e para desespero do tio Manuel Canavarro, que liminarmente os ilivava pois sabia do bom comportamento de quase todos os seus pequenos estimados vizinhos. Desconfiava de mão alheia, mas os seus conceitos de justiça e verdade, que os seus antepassados lhe transmitiram, transformava o sentido da punição em bondosa conversa. Assim desarmava novas invasões.
Zagalo tinha que dominar, fisica e mentalmente, a sua gente de mão. Seleccionou  Fernando Torquaz para testar o seu domínio. Não se enganava ao considerá-lo um rival perigoso. Tímido, perspicaz, olhar matreiro, e pensador! Demasiados atributos, que não se conformavam com a sua liderança. Podia até transformar-se num delator, crime de abominável. Não podia correr tal risco, nem colocar a sua liderança em causa. Fernando Torquaz lançava, discretamente, olhares passageiros à sua colega Margarida que, colocada ao lado mas na mesma fiada de incómodas carteiras, nem se apercebia dos seus olhares indiscretos. Gravou para a eternidade, na sua memória, um pequeno sinal distintivo na face rosada de Margarida. Na mente desestruturada de Zagalo, observando à lupa e durante grandes períodos de tempo, este gesto sistemático por parte de Fernando só podia significar paixoneta de adolescente. Da hipótese, passou à certeza e a partir daí, arma de arremesso contra o espírito tímido do pobre Fernando Torquaz. Na agitação do recreio, acusou-o formalmente desta veleidade e fantasia, com ameaças directas de tramóia pública. Exigia, doravante, submissão absoluta. Aguardaria instruções a breve trecho. Zagalo já havia planeado o assalto aos melões do tio Manuel Canavarro, mas a decisão só lhe seria comunicada no acto. A mente de Fernando Torquaz entrou em instabilidade permanente que despertou a curiosidade de Margarida. A sua timidez impedia-o de afrontar fisicamente Zagalo, possante e intimidador. Não gozava do apoio dos irmãos de Margarida e ,afinal, um assalto a uma propriedade com melões também não era crime de monta. Inteligente, sabia que acto, sem ética e moral, é condenável, mas a razão da força de Zagalo mandou mais alto. A delação  é abominável, mas brandida por Zagalo turvava-lhe a sua lucidez. Fracassaria por cobardia. Zagalo saíra vencedor deste duelo. O seu sorriso para Margarida Rute não voltaria a ser o mesmo e este sorriso ternurento e delicado iria ter consequências no seu imaginário de vida projectada.  O plano acordado com Zagalo iria realizar-se no dia seguinte, à hora combinada. A tarefa atribuída ao Fernando Torquaz era simples. Deveria avançar resoluto para a recolha dos melões, que os despacharia de imediato para o intermediário Roberto que circulava junto à parede. Este, a coberto da vegetação, iria transportá-los até o mandante Zagalo. O festim só seria realizado após os melões repousarem no ninho durante uma noite e levados para outro local seguro. O plano foi executado com distinção pelo cooperante Fernando Torquaz. Saltara resoluto a parede, a cabana estava aparentemente vazia e a tranquilidade do local  mantinha-se. Tudo corria bem, não fora o saber de experiência feito do tio Manuel Canavarro e a inabilidade lógica de Torquaz. O tio Manuel Canavarro deixara desenrolar o processo até apanhar, à mão, o displicente Torquaz. Os movimentos do malandrim denunciavam  conluio. Bem tentou perscrutar o terreno limitrofe mas a sua decadente visão não lhe permitiu distinguir o rosto do intermediário. Zagalo não foi visto, ou sequer imaginado, pela figura rude mas afável do tio Canavarro. Torquaz havia falhado no seu teste. Também tu meu caro Torquazinho? A  tamanha pergunta frontal, reagiu Torquaz com um choro profundo de arrependido. A comoção do tio Canavarro levou-o de volta ao seu estado  bondoso. Zagalo, perante o fracasso da empreitada, tinha que salvaguardar a sua pele. Teria havido delação? Torquaz era, na sua opinião, um espírito fraco que aceitara a delinquência sem coragem para o enfrentar. Ficou na espectativa, dormiu naquela noite em distinto local, até que no dia seguinte decidiu confrontar Torquaz. A prédica foi tranquila e ficou sossegado. O fiasco fora assumido pelo malandrim Torquaz. Zagalo reforçou a sua ascendência sobre ele e declarou, solenemente, que qualquer hesitação no seu apoio, iria ser resolvida na casa de seu pai. Era tudo o que menos desejava ouvir. Em semelhantes trapaças, era a mãe que o tratava como um inofensivo judeu errante. Mas agora, o caso era sério. O mandante não brincava em serviço.Torquaz mergulhou em pensamentos existenciais. Zagalo mostrara do que é capaz e reforçou a sua capacidade de liderança.
Margarida Rute era eficazmente pragmática. Não tinha planos pre-determinados, agia rápida, enfrentava com palavras em calão, contrárias às leis da natureza, as poucas investidas de Zagalo. Reconhecia no olhar de Torquaz uma tristeza profunda, incompatível com o seu temperamento extrovertido e sarcástico. Alguns doces anos, já fora da escola, foram passados debaixo dos mesmos sóis e luas. O tempo necessário para ganhar orientação na vida. Margarida Rute, determinada e visionária, escondera de seus pais a decisão ir revogável da partida para a descoberta de novos mundos. Realista, amealhara um fraco pecúlio monetário que lhe quebrou  as amarras à sua limitada terra.  As lágrimas de seus pais transfomavam-se em rios, imaginou ela da janela do combóio ferrugento. Vacilou, mas não tremeu. Partiu um dia no paquete Vera Cruz. Mais tarde, pensou quantas lágrimas de seus pais andariam pelos mares. Pela primeira vez, a intrepidez de Margarida Rute fora seriamente abalada e os intermináveis dias de viagem no mar colocaram-na no estado emocional do seu querido companheiro Torquaz. Que felicidade persigo eu? Deixara para trás os seus amigos de infância e até mesmo Zagalo lhe não feria já o espírito, nem lhe danava a alma. O sentimento de gratidão sempre a acompanhara e, sem raiva da vida, envia um poster do paquete pátrio Vera Cruz, com referência explicita ao amigo Torquaz. O porto do Funchal mostrara-lhe a dura realidade da vida de marinheiro.

Paquete Vera Cruz
De tenacidade abrasiva, resiste e volta ao alto mar pelo caminho de Cabral. Desembarca, finalmente, em Santos. Luta, estóicamente, e quiz o destino traçado pelos deuses levá-la a Minas Gerais, onde criou duas pedras preciosas, divinas. Eram réplicas da "Perola" original. Os ecos do mundo reverberavam na sua mente, com indicação de que Zagalo se perdera no mundo brasileiro, entre belas baianas e alcóol excessivo. Torquaz, esse, tivera uma vida pacata por terras lusas, perdido em existências várias. O que perdia com timidez de alma, devolvia-lho a perspicácia de homem letrado. Manipulava, constava-se, os livros no seu inseparável e-book e, irónicamente, era amante das viagens.  Badalava-se que rejeitava, por escolha pensada, os modernismos dos facebooks e quejandos, tão ao gosto da geração das pedras preciosas.
O deusdado brasileiro havia decidido prendar as três jóias com uma estadia num hotel de luxo, na zona elitista do Lido (Madeira-Funchal). Justificação sucinta: bom aproveitamento no vestibular. Os deuses não dormem e quiz o deus grego traçar a teia dos destinos cruzados, deterministas, destes dois estóicos de juventude. Acontecimento improvável, mas tornado possível pelos deuses. As duas turmalinas, resplandecentes, coloridas e divinas, cintilavam nas negras pedras da praia, ofuscando em beleza qualquer francesa rafinée. O silêncio que se abateu na esplanada, deixava chegar o linguajar melífluo e divertido das beldades. Não escaparam também ao olhar matreiro do Torqual, mas a sua perspicácia levou-o a fixar-se subitamente, numa mulher madura, de linguajar transmontano-brasileiro que a denunciou. O espírito não o atraiçoa e fixa demoradamente um sinal na jovem da sua idade. Margarida Rute, estupefacta de tanto descaramento, lança um olhar intimidativo ao farsante. É neste preciso instante, que os deuses impõem as suas leis.  Rápida, felina e destemida, lança-se fogosa para a brasa em fogo do Torquaz. Ficaram enleados num beijo ardente e prolongado.  A cena não passou despercebida às suas jóias, tendo uma delas sussurrado um enigmático " Lindo, né pá?" Afinal, a transparência da Pérola fora sempre de uma transparência que excedia a de um cristal de quartzo hialino. A outra esboçara um superior sorriso feiticeiro, no mais puro estilo de Gioconda.
Para a Pérola, fora a única vez que falhara com as turmalinas. Foi um escasso minuto, mas na vida só vale o presente. O passado, já foi, e o futuro é desconhecido. É a lei da vida. Mas, mais uma vez uma Pérola não morre na praia. Determinada, imperial, chama as suas princesas e decreta, pragmáticamente "Jóias,  apresento-vos um meu grande amigo de infância, moldado pelas  mesmas geadas e que comeu o  pão que o diabo amassou em terras pedregosas".  Desarmara-as, com a elegância e finura de trato com que sempre as brindara. A transparência voltara de novo ao espírito inquieto e à alma imaculada das suas preciosidades.
A presença das fenomenais beldades e da resposta incisiva, clara e directa da Pérola exerceram sobre Torquaz uma pressão brutal. Perturbararam-lhe o seu elaborado pensamento e o livre arbítrio, necessário, na tomada de decisões. Titubiou, sentiu-se mesquinho e, lentamente, foi reagindo à situação.

Lido - Funchal (Madeira)

Ocorreu-lhe, então, argumentar com base num texto que acabara de ler . Era um pensador de Rio Frio e  que despertou a curiosidade das colegiais. Exímio observador, garantira um objectivo triplo: despertou o interesse intelectual das graças divinas, Rio Frio era nome reconhecido pela Pérola e remendou, atabalhoadamente,  a sua timidez.  Logo ali ficou uma promessa das colegiais. A perspicácia de Torqual revelava-se a cada instante. Atirou à Pérola, a sua incompreensão em tão estranho nome: Margarida Rute. Porque não Maria? Seria um segredo familiar? O seu e-book, à vista de toda a gente, encerrava escondidamente uma possível resposta. Cristão novo? Não teria o espírito aventureiro de Margarida Rute as suas raízes numa alma do Toledo medieval? E a sua propensão para a luxúria e para os cabedais? Torquaz conseguira dominar a complicada situação a que o beijo fatal o levara. Ávidas de saber, não deixaram cair as palavras chave lançadas por Torquaz: Toledo, nomes estranhos. Margarida, sibilina, percebeu o sentido hábil do seu amigo. Era esta a faceta principal que mais a seduzia. Apressadamente, Torquaz terminou a conversa com fundamento no avião que o aguardava no Aeroporto. A despedida de Margarida Rute terminou outra vez, com um beijo sentido a Torquaz, agora aplaudido pelas suas delicadas e sensíveis beldades. O registo foi transmitido em directo, ao deusdado brasileiro. Torquaz também não podia ficar impune a tamanho atrevimento e a elegância e esperteza  da juventude sem prémio. Pérola, ali mesmo, declarou ao seu amor brasileiro "Amô, as mininas reclamam nova viagem". Falou-se nas raízes, e em harmonia plena, logo ali foi despachado: " Aprovado, palavra de rei".

Funchal, V.Esteves_2012














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