Vendedores de jóias e pins na lapela . . .
O mestre escola e o boticário não partilhavam o seu ideário político , mas não conseguiam esgrimir os seus argumentos ao ponto de importunar Calisto Elói. O morgadio e os seus proveitos completavam a supremacia sobre os tímidos rivais. Tão superior era a sua erudição sobre o mundo romano, e temas abrangentes da nacionalidade que, numa mordomia sua da festa de São Sebastião, fora apontado para a governança de Miranda. Aceitara a alcaideria, mas as suas teses fundamentalistas assentes num passado longinquo, de pronto tiveram uma reacção dos vereadores de Miranda e o inevitável abandono, de moto próprio, de Calisto Elói. Governassem, pois, os restantes. O seu morgadio permitia-lhe, com desafogo de vida, prosseguir a sua cultura clássica e o casamento sem amor com a morgada de Travanca. A sua erudição era tal que nas redondezas se apontou o seu nome para lídimo representante como deputado da Nação pelo círculo de Miranda. Na verdade, para os ilustres agricultores possidentes, o então representante de Miranda andava perdido por Lisboa, com vida devassa e beberragem vínica a rodos, e os seus eleitores não conseguiam localizá-lo na selva lisboeta. As cunhas e influências ficavam assim bloqueadas por falta de destinatário.
O teste decisório dos livros antigos ia fulminando o erudito Calisto Elói. Fiado pelas virtualidades das fontes de água lisboetas, descritas nos seus livros de referência, levaram-no, num ápice, a leito prolongado. A suposta formusura das faces rosadas das mulheres da capital do reino atribuída às fontes lisboetas levara-o ao desprezo e chacota da madre dum colégio de freiras, de rostos lívidos e desconcertantes. Calisto Elói não era desprovido de inteligência, mas a desconexão dos seus pressupostos mentais e a realidade era abissal. Causa e efeito eram divergentes. De decepção em decepção, foi tomando conta do pulsar malévolo da capital. Nas suas andanças pela procura de habitação condigna, bateu com fragor no lamaçal de Alfama, nos comentários jocosos da populaça, no ridículo do provincianismo asumido e para cúmulo, meteu-se em locais onde marinheiros, libertinagem e vidas amorosas sem destino definiam as suas regras. Cais do Sodré, próximo dos estaleiros de caravelas. Manifestamente os seus primeiros passos na capital desenrolaram-se todos em contramão. O mundo lisboeta afastava-se da idílica Miranda e a chacota fazia parte da lei da selva. Gozado fora também pelos comerciantes, arautos do progresso, ao procurar o Chafariz dos Cavalos soterrado havia muito pelo terramoto de Lisboa.
Tal foi o percurso da sua vida experimental fora dos distantes serros do Pedriço, que bordejam Caçarelhos. A estreia do desconhecido parlamentar Calisto Elói no Parlamento, que nem a figura ridícula da sua indumentária nem a protecção manifesta do Abade de Tibães o fez vacilar, desencadeou um forte impacto, cativou os seus correligionários e tirou, do sério e da galhofa, os seus opositores políticos. Portugal estava alagado, dizia, numa onda de corrupção e compadrio e a Pátria teria que ser salva por homens virtuosos, impolutos e eruditos. A filtragem obrigatória de toda a actividade parlamentar tornara-se imperativa para C. Elói, remando contra o escárnio e os regulamentos do Parlamento e as ímpias leis, exploradoras infames de impostos sofridos. A luta era desigual, impiedosa e desproporcionada. A mesquinhez dos parlamentares, seus pares, não lhe poupariam o atrevimento de provincianismo prímário. A força de Calisto Elói residia no conteúdo e não nas formalidades da praxe. A sua altivez não vergava perante os seus pares, de ética e moral, duvidosas. Tinha um profundo desprezo pela maioria deles, fazendo valer a força moral derivada dos seus maiores.
Considerava-os como invertebrados sem capacidade de posicionamento vertical, sendo o seguidismo cego e a bajulação do chefe a única prática social. Fora apontado para parlamentar dos seus eleitores, como melhor protecção contra as investidas selvagens das traiçoeiras imposições de impostos. Requeriam quebra das décimas, e na posição avançada do tio Zé do Cruzeiro, a abolição total de todos os impostos. Se a capital não provia de estradas, de cultura e de um mínimo vislumbre de futuro, force-se Lisboa a tercer armas, tal como D. Teresa - mãe do infante Afonso fez no encontro de Ricobayo (Rio Esla). Os seus eleitores perdiam a vida dura em serras inóspitas, altaneiras, sem vislumbre de protecção, divina ou terrena. O seu primeiro acto político na Câmara procurou dinamitar a fórmula do seu juramento. Sendo monárquico legitimista, decidiu colocar entre aspas o seu juramento e a sua erudição leva-o à conclusão que não poderia exigir-se juramento a quem potencie perjúrio. Caso próprio. Calisto Elói não se ajustava ao regulamento vigente. A boa fé, segundo os seus valores, devia substituir o juramento. O Abade de Tibães, transmontano como ele, já rodado em história política, convenceu o seu amigo, de que aquela fórmula de juramento era uma mera palhaçada. Do perjúrio livrava-o ele, bastando ser fiel à religião, constituindo o juramento livre passagem directa a ateu. Ganhava todos os direitos de zurzir no rei e nas leis, a seu belo prazer, e simultaneamente ser seu defensor. Claro está que o acesso a prebendas e mordomias, públicas ou privadas ficavam garantidas, e a carteirinha individual protegida pela imunidade parlamentar e pelo segredo.
A celeuma do juramento criou burburinho na Câmara, aplausos e apupos sucederam-se para aumentar o ruído de fundo. Os legitimistas viam nele um português à antiga, audaz, erudito e honrado e, por se tratar de uma ave de arribação, a oposição delineou uma estratégia para o queimar em lume brando. Habituados à prática da mentira, esmeravam-se na procura de falácias e não faltaria tempo para enlear Calisto Elói em enredos perigosos. Mais cedo que tarde. Um novo Dom Quixote lutando contra moinhos de vento.
A entrada no mundo da cultura e da civilização, ou do mundo pecaminoso da devassa segundo C. Elói, foi acompanhada de perto pelo Abade de Tibães. Este convidara-o,certa vez, a uma ida ao teatro onde se desenrolava a peça lírica Lucrécia Bórgia. A devassa diva exacerbou a quietude dos pensamentos reflexivos de C. Elói sobre o conceito de Arte greco-romana. A esta mistura explosiva, juntou o Abade o argumento do subsidio estatal, com impostos da Nação. Perante estes factos, praguejou contra tudo e contra todos, não poupando sequer o amigo Abade. Pela mesma altura, reclamou um deputado- Dr. Libório um subsídio análogo para o teatro de Sâo João no Porto. A talhe de foice, esgrimiu os seus argumentos contra a camara, dita civilizada. Contaram-se sussurros, vaias, apupos, bravo, bravíssimo e apoiado. Intrépido, assume-se como provinciano e demodée, e enfrenta sem vacilar a trinitruante turba parlamentar. Em nome da vossa justiça e opulência, alimentem o circo lisboeta dos deputados, paguem principescamente do erário público as devassas Lucrécias Borjas, taxem , sisem, espoliem, liquidem de vez os miseráveis do país. Em nome da vossa justiça, condenem igualitariamente a sociedade portuguesa, como iguais devassos e gastadores, em desiguais terras e comendas. Condenai ao purgatório desta vida o contribuinte das serranias e ilibai os corruptos. C. Elói, picado no espírito pela luxúria do reino, fustigou a Câmara de deputados com violentas diatribes verbais. O Abade de Tibães não conseguiu manter o homem nos estribos. Fora provocado num debate da legislação sobre importação e direitos de objectos de luxo. A previsivel humilhação na Câmara apontava para os desajeitadas vestimentas do provinciano. A sua mente era vergastada por um pensamento constante. Lá pelas serranias, tratava eu bem destas bestas. Com qualquer arreio de animal digno desse nome, a dignidade humana seria reposta no acto. Despercebida passou esta frágil propensão ao Abade de Tibães e correlegionários amigos. Enveredara de novo pela argumentação clássica. O garboso Dr. Libório, deputado pelo Porto, assumira posição oposta ao de C. Elói. Gongórico e de discurso inócuo, iludibriava a Câmara com a sua retórica, para enlevo da maioria. Percebeu a inutilidade do dito cujo e pela primeira vez, formata a sua opinião sobre a maioria.O luxo vira-o o ilustre deputado do Porto, nos palácios de França, nas sumptuosas damas dos Champs Elisée, nas caleches da civilizada Paris, nas jóias de exuberantes madames. "O luxo é o espantalho dos ânimos sandios e cainhos", disse. Afrontava, assim, o digno representante C. Elói. Tomara o veneno da víbora, tão receado pelo Abade de Tibães. Não habituado às tiradas poetico-filosóficas do Dr. Libório, à vacuidade do pensamento do citado, fugiu-lhe uma clara vitória no debate. Perdeu-se nos meandros da legislação sobre a Justiça. Vencera a suposta relação entre luxo e riqueza das nações. Alguns aplausos se ouviram quando contra-argumerntou que quando o luxo é maior, é proporcionalmente menor o número de ricos. Para alimentar o luxo há que responder com corrupção e devassa moral. Às sociedades de luxúria segue, invariavelmente, o ciclo do declineo. E a independência dos povos evapora! Assim cairam Roma, Pérsia, Egipto e o império Português, entre tanto impérios. Argumentos fracos para a Câmara.
Cioso da vitória, o Dr. Libório não se dignou sequer refutá-lo. Não descia ao nível do miserável e provinciano C. Elói. A imprensa governamental vilipendiou-o, preparando-lhe a cicuta mortal. De boa fé, admitiu que não era assim que se tratava um deputado da nação e se desreipeitavam os seus montesinos eleitores. Se tivesse que partir, partiria pelo próprio pé. Iria contar os factos aos seus eleitores. Todas as senhorias, condes, viscondes, fidalgos, burgueses e quejandos se haviam juntado no festim da humilhação de um homem, digno dos seus eleitores. Calisto Elói enfrentara a Câmara e ganhou, apesar de tudo, a consideração de muitos deputados. As forças políticas presentes tentavam agora arregimentá-lo à sua tribo. Acercaram-se os deputados governamentais, com promessas de dividendos correspondentes à sua preclara inteligência. Desta tentação o procuraram livrar os correliginários da oposição, com o argumento das novas voragens de impostos governamentais que se adivihavam. Politicamente correcto, ia dizendo que quer uns quer outros não falavam português vernáculo. Nenhuma das seitas parlamentares lhe inspirava qualquer confiança. A meliflua teia ia, paulatinadamente, enredando C. Elói. A queda dum Anjo, sem mácula como é devida a um anjo, estava prestes a cair. C. Castelo Branco adiciona ao integro C. Elói, a incerteza dum coração de 44 anos. Uma vaporosa brasileira daria a C. Elói a vivência amorosa e o descongelamento da rispidez de preceitos, à custa dos cobres do morgadio e da destruição do casamento sem amor. Assim, tentou interpretar Fernando Torquaz a citação no Parlamento da Queda dum Anjo.
A prosa já vai longa e termina por aqui o primeiro acto. Estamos "em vida fictícia como país independente", no dizer de Camilo. Deixou ao leitor a evolução da vida de C. Elói. Será contemplada no 2º. acto, com figurantes de pins na lapela , vendedores de jóias e rasgadores de bandeiras [A leitura do livro "A queda dum Anjo" merece uma leitura atenta. A descarga do livro electrónico (*.pdf) é grátis, podendo ser acedido clicando aqui ].
As dificuldades financeiras do país são demasiado óbvias, mas o posicionamento do PM face às actuais dificuldades é perfeitamente previsível, por acefalia congénita e massacre continuado dos mesmos. Divirta-se clicando agora. Tempos de peste negra.
Os vendedores de ilusões do Passos Coelhoso assentaram desta vez arraiais em Caçarelhos. Os deputados da Nação acordaram com o estrondo da queda dum anjo. Fernando Torquaz ficara intrigado com tão inesperado acontecimento e, para sua própria segurança, procurou albergar-se debaixo do velho capote de Calisto Elói. As ondas televisivas perturbam a mente, reconhece Torquaz, mas a queda dum anjo ultrapassa a sua racionalidade. Não seria antes um Objecto Voador Não Identificado (OVNI) que aterrara ali? Duvida dos seus próprios sentidos e, por instantes, perde a noção do real, pilotado pelo seu imaginário. Já não atina se de facto é a queda real dum anjo ou o despropósito do esvoaçar de anjos assexuados em território sagrado dos representantes da Nação. O que teria levado ao descontrolo alar da queda dum anjo no Parlatório? Os sons que acabara de ouvir traduziam alguma metáfora? Seria pura ficção ou crua realidade?
Fig.1-Cruzeiro de Caçarelhos |
Alvejado fora V. Gaspacho, mas ao menos esse tem existência real, pausada e bem cruenta, fala inglês e diz que não mente. Admite apenas, certos lapsos. Torquaz reflecte a sua peculiar especificidade temperamental. Atordoado com o impacto de tal acontecimento - A Queda dum Anjo, depressa se recompôs voltando ao seu estado frio e racional. Calisto Elói, fora deputado pelo círculo de Miranda, figura literária de C. Castelo Branco, amaldiçoado da celebrada corja de políticos que, já naquela época, batiam no zé povinho com bravura desmedida. Calisto Elói de Silos e Benevides de Barbuda, nascido no distante ano de 1815 em Caçarelhos, era um rude erudito transmontano, ridicularizado no seu estado angelical pelas suas polainas e vestimentas de corte único, quando se apresenta no Parlamento. O seu nome espanta qualquer bárbaro , pelo exagero de tantos nomes e pelo recorte de tantos "de" e "e". O pragmatismo germânico prefere a aglomeração de palavras e duas palavras são suficientes para caracterizar um índividuo.Os livros dos seus avoengos permitiam-lhe julgar os tempos da Roma Imperial, e tipificar os Dioclecianos, Calígulas e Neros dos tempos modernos. A sua vida não tinha lugar na história. Desposara novo a morgada de Travanca e, claro, a sua fortuna saira reforçada. Em Caçarelhos, as suas cogitações eram ouvidas com submissão e os seus ditos eram religiosamente registados. Era claro no seu pendor político. Fundamentava as posições nas antigas Cortes de Lamego. Primazia absoluta para o antigo, velha legislação, cartas forais e veneração da pura casta genealógica lusa, transmissores dos altos valores pátrios. Claro está que os fidalgos comarcãos não lhe suportavam o olhar altivo, de um puro sangue genealógico. Um seu tio-avó perdera todos os seus anos à descoberta de actos indignos da fidalguia lusa, mas raramente descritos. Legara a Calisto Elói um livro de memórias intitulado: Livro-Negro das Linhagens de Portugal. Exibia a sua eloquência e dominava, a seu belo prazer, velhas linhagens com temas arrasadores. Apontava vícios perversos como mancebias, adultérios, coutos danados e temas assim. Não se opunha ao progresso, não viesse o progresso importuná-lo a ele. Era homem inofensivo, esolhera a leitura dos clássicos para seu conforto existencial numa Caçarelhos intemporal e delegara, imagine-se, a liderança das courelas à sua dedicada esposa.
O mestre escola e o boticário não partilhavam o seu ideário político , mas não conseguiam esgrimir os seus argumentos ao ponto de importunar Calisto Elói. O morgadio e os seus proveitos completavam a supremacia sobre os tímidos rivais. Tão superior era a sua erudição sobre o mundo romano, e temas abrangentes da nacionalidade que, numa mordomia sua da festa de São Sebastião, fora apontado para a governança de Miranda. Aceitara a alcaideria, mas as suas teses fundamentalistas assentes num passado longinquo, de pronto tiveram uma reacção dos vereadores de Miranda e o inevitável abandono, de moto próprio, de Calisto Elói. Governassem, pois, os restantes. O seu morgadio permitia-lhe, com desafogo de vida, prosseguir a sua cultura clássica e o casamento sem amor com a morgada de Travanca. A sua erudição era tal que nas redondezas se apontou o seu nome para lídimo representante como deputado da Nação pelo círculo de Miranda. Na verdade, para os ilustres agricultores possidentes, o então representante de Miranda andava perdido por Lisboa, com vida devassa e beberragem vínica a rodos, e os seus eleitores não conseguiam localizá-lo na selva lisboeta. As cunhas e influências ficavam assim bloqueadas por falta de destinatário.
O teste decisório dos livros antigos ia fulminando o erudito Calisto Elói. Fiado pelas virtualidades das fontes de água lisboetas, descritas nos seus livros de referência, levaram-no, num ápice, a leito prolongado. A suposta formusura das faces rosadas das mulheres da capital do reino atribuída às fontes lisboetas levara-o ao desprezo e chacota da madre dum colégio de freiras, de rostos lívidos e desconcertantes. Calisto Elói não era desprovido de inteligência, mas a desconexão dos seus pressupostos mentais e a realidade era abissal. Causa e efeito eram divergentes. De decepção em decepção, foi tomando conta do pulsar malévolo da capital. Nas suas andanças pela procura de habitação condigna, bateu com fragor no lamaçal de Alfama, nos comentários jocosos da populaça, no ridículo do provincianismo asumido e para cúmulo, meteu-se em locais onde marinheiros, libertinagem e vidas amorosas sem destino definiam as suas regras. Cais do Sodré, próximo dos estaleiros de caravelas. Manifestamente os seus primeiros passos na capital desenrolaram-se todos em contramão. O mundo lisboeta afastava-se da idílica Miranda e a chacota fazia parte da lei da selva. Gozado fora também pelos comerciantes, arautos do progresso, ao procurar o Chafariz dos Cavalos soterrado havia muito pelo terramoto de Lisboa.
Tal foi o percurso da sua vida experimental fora dos distantes serros do Pedriço, que bordejam Caçarelhos. A estreia do desconhecido parlamentar Calisto Elói no Parlamento, que nem a figura ridícula da sua indumentária nem a protecção manifesta do Abade de Tibães o fez vacilar, desencadeou um forte impacto, cativou os seus correligionários e tirou, do sério e da galhofa, os seus opositores políticos. Portugal estava alagado, dizia, numa onda de corrupção e compadrio e a Pátria teria que ser salva por homens virtuosos, impolutos e eruditos. A filtragem obrigatória de toda a actividade parlamentar tornara-se imperativa para C. Elói, remando contra o escárnio e os regulamentos do Parlamento e as ímpias leis, exploradoras infames de impostos sofridos. A luta era desigual, impiedosa e desproporcionada. A mesquinhez dos parlamentares, seus pares, não lhe poupariam o atrevimento de provincianismo prímário. A força de Calisto Elói residia no conteúdo e não nas formalidades da praxe. A sua altivez não vergava perante os seus pares, de ética e moral, duvidosas. Tinha um profundo desprezo pela maioria deles, fazendo valer a força moral derivada dos seus maiores.
Considerava-os como invertebrados sem capacidade de posicionamento vertical, sendo o seguidismo cego e a bajulação do chefe a única prática social. Fora apontado para parlamentar dos seus eleitores, como melhor protecção contra as investidas selvagens das traiçoeiras imposições de impostos. Requeriam quebra das décimas, e na posição avançada do tio Zé do Cruzeiro, a abolição total de todos os impostos. Se a capital não provia de estradas, de cultura e de um mínimo vislumbre de futuro, force-se Lisboa a tercer armas, tal como D. Teresa - mãe do infante Afonso fez no encontro de Ricobayo (Rio Esla). Os seus eleitores perdiam a vida dura em serras inóspitas, altaneiras, sem vislumbre de protecção, divina ou terrena. O seu primeiro acto político na Câmara procurou dinamitar a fórmula do seu juramento. Sendo monárquico legitimista, decidiu colocar entre aspas o seu juramento e a sua erudição leva-o à conclusão que não poderia exigir-se juramento a quem potencie perjúrio. Caso próprio. Calisto Elói não se ajustava ao regulamento vigente. A boa fé, segundo os seus valores, devia substituir o juramento. O Abade de Tibães, transmontano como ele, já rodado em história política, convenceu o seu amigo, de que aquela fórmula de juramento era uma mera palhaçada. Do perjúrio livrava-o ele, bastando ser fiel à religião, constituindo o juramento livre passagem directa a ateu. Ganhava todos os direitos de zurzir no rei e nas leis, a seu belo prazer, e simultaneamente ser seu defensor. Claro está que o acesso a prebendas e mordomias, públicas ou privadas ficavam garantidas, e a carteirinha individual protegida pela imunidade parlamentar e pelo segredo.
A celeuma do juramento criou burburinho na Câmara, aplausos e apupos sucederam-se para aumentar o ruído de fundo. Os legitimistas viam nele um português à antiga, audaz, erudito e honrado e, por se tratar de uma ave de arribação, a oposição delineou uma estratégia para o queimar em lume brando. Habituados à prática da mentira, esmeravam-se na procura de falácias e não faltaria tempo para enlear Calisto Elói em enredos perigosos. Mais cedo que tarde. Um novo Dom Quixote lutando contra moinhos de vento.
A entrada no mundo da cultura e da civilização, ou do mundo pecaminoso da devassa segundo C. Elói, foi acompanhada de perto pelo Abade de Tibães. Este convidara-o,certa vez, a uma ida ao teatro onde se desenrolava a peça lírica Lucrécia Bórgia. A devassa diva exacerbou a quietude dos pensamentos reflexivos de C. Elói sobre o conceito de Arte greco-romana. A esta mistura explosiva, juntou o Abade o argumento do subsidio estatal, com impostos da Nação. Perante estes factos, praguejou contra tudo e contra todos, não poupando sequer o amigo Abade. Pela mesma altura, reclamou um deputado- Dr. Libório um subsídio análogo para o teatro de Sâo João no Porto. A talhe de foice, esgrimiu os seus argumentos contra a camara, dita civilizada. Contaram-se sussurros, vaias, apupos, bravo, bravíssimo e apoiado. Intrépido, assume-se como provinciano e demodée, e enfrenta sem vacilar a trinitruante turba parlamentar. Em nome da vossa justiça e opulência, alimentem o circo lisboeta dos deputados, paguem principescamente do erário público as devassas Lucrécias Borjas, taxem , sisem, espoliem, liquidem de vez os miseráveis do país. Em nome da vossa justiça, condenem igualitariamente a sociedade portuguesa, como iguais devassos e gastadores, em desiguais terras e comendas. Condenai ao purgatório desta vida o contribuinte das serranias e ilibai os corruptos. C. Elói, picado no espírito pela luxúria do reino, fustigou a Câmara de deputados com violentas diatribes verbais. O Abade de Tibães não conseguiu manter o homem nos estribos. Fora provocado num debate da legislação sobre importação e direitos de objectos de luxo. A previsivel humilhação na Câmara apontava para os desajeitadas vestimentas do provinciano. A sua mente era vergastada por um pensamento constante. Lá pelas serranias, tratava eu bem destas bestas. Com qualquer arreio de animal digno desse nome, a dignidade humana seria reposta no acto. Despercebida passou esta frágil propensão ao Abade de Tibães e correlegionários amigos. Enveredara de novo pela argumentação clássica. O garboso Dr. Libório, deputado pelo Porto, assumira posição oposta ao de C. Elói. Gongórico e de discurso inócuo, iludibriava a Câmara com a sua retórica, para enlevo da maioria. Percebeu a inutilidade do dito cujo e pela primeira vez, formata a sua opinião sobre a maioria.O luxo vira-o o ilustre deputado do Porto, nos palácios de França, nas sumptuosas damas dos Champs Elisée, nas caleches da civilizada Paris, nas jóias de exuberantes madames. "O luxo é o espantalho dos ânimos sandios e cainhos", disse. Afrontava, assim, o digno representante C. Elói. Tomara o veneno da víbora, tão receado pelo Abade de Tibães. Não habituado às tiradas poetico-filosóficas do Dr. Libório, à vacuidade do pensamento do citado, fugiu-lhe uma clara vitória no debate. Perdeu-se nos meandros da legislação sobre a Justiça. Vencera a suposta relação entre luxo e riqueza das nações. Alguns aplausos se ouviram quando contra-argumerntou que quando o luxo é maior, é proporcionalmente menor o número de ricos. Para alimentar o luxo há que responder com corrupção e devassa moral. Às sociedades de luxúria segue, invariavelmente, o ciclo do declineo. E a independência dos povos evapora! Assim cairam Roma, Pérsia, Egipto e o império Português, entre tanto impérios. Argumentos fracos para a Câmara.
Cioso da vitória, o Dr. Libório não se dignou sequer refutá-lo. Não descia ao nível do miserável e provinciano C. Elói. A imprensa governamental vilipendiou-o, preparando-lhe a cicuta mortal. De boa fé, admitiu que não era assim que se tratava um deputado da nação e se desreipeitavam os seus montesinos eleitores. Se tivesse que partir, partiria pelo próprio pé. Iria contar os factos aos seus eleitores. Todas as senhorias, condes, viscondes, fidalgos, burgueses e quejandos se haviam juntado no festim da humilhação de um homem, digno dos seus eleitores. Calisto Elói enfrentara a Câmara e ganhou, apesar de tudo, a consideração de muitos deputados. As forças políticas presentes tentavam agora arregimentá-lo à sua tribo. Acercaram-se os deputados governamentais, com promessas de dividendos correspondentes à sua preclara inteligência. Desta tentação o procuraram livrar os correliginários da oposição, com o argumento das novas voragens de impostos governamentais que se adivihavam. Politicamente correcto, ia dizendo que quer uns quer outros não falavam português vernáculo. Nenhuma das seitas parlamentares lhe inspirava qualquer confiança. A meliflua teia ia, paulatinadamente, enredando C. Elói. A queda dum Anjo, sem mácula como é devida a um anjo, estava prestes a cair. C. Castelo Branco adiciona ao integro C. Elói, a incerteza dum coração de 44 anos. Uma vaporosa brasileira daria a C. Elói a vivência amorosa e o descongelamento da rispidez de preceitos, à custa dos cobres do morgadio e da destruição do casamento sem amor. Assim, tentou interpretar Fernando Torquaz a citação no Parlamento da Queda dum Anjo.
A prosa já vai longa e termina por aqui o primeiro acto. Estamos "em vida fictícia como país independente", no dizer de Camilo. Deixou ao leitor a evolução da vida de C. Elói. Será contemplada no 2º. acto, com figurantes de pins na lapela , vendedores de jóias e rasgadores de bandeiras [A leitura do livro "A queda dum Anjo" merece uma leitura atenta. A descarga do livro electrónico (*.pdf) é grátis, podendo ser acedido clicando aqui ].
As dificuldades financeiras do país são demasiado óbvias, mas o posicionamento do PM face às actuais dificuldades é perfeitamente previsível, por acefalia congénita e massacre continuado dos mesmos. Divirta-se clicando agora. Tempos de peste negra.
Sem comentários:
Enviar um comentário